Histórias e Versos | Ana Paula Tavares

Para a Ivone Ralha

Quando a púrpura fermosa
Desse cravo, Anarda bela,
Em teu céu se jacta estrela,
Senão luzente, olorosa
Equivoca-se lustrosa,
(por não receber o agravo
De ser dessa boca escravo)
Pois é, quando o cravo a toca,
O cravo, cravo da boca,
A boca, boca de cravo*.

Era preciso escolher um verso com flores lá dentro e que se pudesse escandir em pequenos fragmentos para não ter à mostra uma métrica evidente e ao contrário esconder os delicados pés em que assenta, o tempo que demora a dizer para que a cor das vozes se expandisse no azul intenso de um véu deixado no deserto e ainda possuir a memória e a chave para encontrar quem o teceu e escondeu no segredo de cada fibra mil e uma histórias de nascer e morrer e arte de cada contador de histórias e as projecções infinitas das vozes com todas as suas cores e sentidos. Os versos seriam assim uma ordenação quieta de sílabas ordenadas para nomear todos os compassos de espera e outras pausas e sublinhar entre os dedos as sílabas, seus acentos e a partilha de cada chama até à sua total extinção. Eu poderia percorrer desertos e mesmo assim a senhora encontraria a ciência certa de ilustrar o meu deserto cama e túmulo de desenhos para ler na orientação da sombra, na diferença gradual dos tons entre amarelo e ocre como a velha sarabanda nos ensina e convida a escutar. Podiam ser do barroco os meus versos, como eram aqueles todos que deixei antes de partir para Pasárgada, depois da morte do rei, e do começo da era das concubinas e mesmo assim à senhora caberia a tarefa de preencher o imenso vazio da página alinhando à esquerda as coisas do coração e depois por ordem a matéria do espaço com os seus silos de vontades contidas, jardins selvagens de capim e acácias, deixando ainda assim lugar para pequenas cabanas de abrigo e lugares de matar a sede.
Podiam ser outros versos brancos com rimas negras por debaixo das fórmulas copiados de Noémia de Sousa, a grande adivinhadora das falas dos antepassados sepultados no chão de oferta que habitamos e aos gritos nas Américas profundas e grandes. Ainda assim a senhora traria da combinação dos tapetes de ráfia a combinação matemática (ângulos repetidos, quadrados, catetos) multiplicação das cores e a mistura exacta dos tons para se puderem contar as sílabas alexandrinos azuis, ou hendecassílabos sépia. Podiam também e já agora ser os versos simples feitos para encantar meninos longe das esdrúxulas pessoas e dos caminhos difíceis do método e da regra. São os versos que celebram a vida com a sua fome à solta e as lentíssimas mulheres de filhos às costas e enxadas na mão, hinos inteiros para cantar de manhã e começa o dia. A esses a senhora empresta o coração e os anjos e a sabedoria do risco para em harmonia desenhar a luz que nos falta como o ar que se respira e respira esta vida que se esquece vivendo. Como nomear-lhe a técnica? Com que rigor lhe atribuir um método? Sons de ver, vozes iluminadas, concisão de recursos ciência correcta de desenhar as falas. Cravo, pois a última palavra.

* O poema que inicia a crónica é de 1705 e foi escrito por Manuel Botelho de Oliveira, poeta nascido no Brasil.

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