Setentrião
Ilustração para capa de livro.
Editorial Caminho. 2005
"À noite começava a subir a maré. Primeiro riachos tímidos, logo depois rios de caudal mais grosso retalhando o deserto que antes havia, formando um imenso arquipélago de pequenas ilhas destituídas de qualquer vegetação. Depois, iam as ilhas diminuindo velozmente e o grande petroleiro transformava-se, ele próprio, em ferruginosa e isolada ilha. Em volta dessas ilhas de areia que o mar furioso ia apagando já só sobravam irracionais correntes entrechocando-se, e o rugido da maré crescendo de tom, as suas ondas lambendo vorazes o velho casco. Asiswa?, perguntavam-se uns aos outros, esmagados pelo avassalador rugido. Assustava-se aquele pequeno povo por não saber até onde o mar iria subir nesse dia. Desabituados que estavam de interrogar sobre os dias do amanhã.
Tranquilizou-os o 302, experiente. O mar subiria mais um pouco, é certo; inundaria mesmo os velhos porões misteriosos, povoando-os de peixes e sons secos rasgando a noite como um monstro tossindo nas entranhas de outro monstro. Mas não chegaria tão alto que os molhasse…"
Págs. 57-58
Meridião
Ilustração para capa de livro.
Editorial Caminho. 2005
"Um dia acordou a baía sem água. Como estavam em Agosto, mês do tempo frio e do cacimbo, pensaram os moradores que era mais um desses dias em que, por falta de brisa, ainda que só aura fosse, fica o mar quieto como mármore; um desses dias em que as árvores deixam pender as folhas como se fossem morcegos de pálpebras cerradas, não as abrindo para evitar a vertigem de ver o mundo ao contrário. Mas quando a primeira criança madrugadora lançou uma pedrinha polida paralela à água, para a ver saltar por cima dela como se tivesse frio, estranhou-lhe o comportamento atabalhoado do bater em coisa sólida, não molhada; e quando o primeiro pescador empurrou o seu xitatarru pela areia da praia, ainda azulava a madrugada, verificou com surpresa que esse peixe de pau não ganhava a leveza que normalmente ganha no contacto com a onda. Pelo contrário, continuava a pesar…"
Pág. 126