Desmedida | Ruy Duarte de Carvalho

Leituras que quis desenhar. Só por isso mesmo, porque quis desenhá-las. Ilustração não publicada. 2011

 

 

“Você vai assim de carro como a gente agora está a ir aqui, Paulino, e vê os tempos todos que estas viagens misturam. A ir pelas picadas de cá, estou-lhe a falar de um rio que tem lá, e à nossa volta não tem água nenhuma. Para a frente, quando voltar a falar no assunto, vou lembrar-me é das paisagens daqui. Lá, pelos asfaltos das estradas de lá, eu ia dessa vez a atravessar – de cada vez a atravessar de cada vez, a abrir caminho através, não ia “atravessando”, geruindo, como sempre dizem no Brasil – a atravessar umas ilhas e a conversa pôs-me foi a falar daqui. Eu ia muito bem à espreita dos índios, pelas ilhas, de balsa em balsa, atento às várzeas, e aos buritis das várzeas, e à nudez desventrada e órfã das lagoas avulsas que a água, muita, arremedava nos buracos da terra emprestada pelo talude da estrada. E ganhava perfil, largada do céu, acima da bruma larga, a distância alargada da serra de Santo Inácio. Xique-Xique havia de ficar na nossa trás, e à esquerda. Eu estava a ir e a estar mesmo ali. Falei daqui, e agora, aqui, lembrando que estive lá, dá para dar conta que ter lá estado comporta ter falado, lá, de como é estar aqui. Está vendo? Não vale a pena… Você quer explicar? Mas vai explicar mais como?”

 

Desmedida. Luanda – São Paulo – São Francisco e volta foi lido numa edição da Cotovia de 2006.