Carta para Alexandra | Ana Paula Tavares

 

 

 

Ilustração para crónica na Pública (revista do Público).  2001

 

Kuíto, Angola, longe, muito longe do mundo
Alexandra:
Um manto de silêncio desceu das montanhas, agora que o calor começa, e deixa semear o milho, colher amoras silvestres e mel, faz aumentar o choro das crianças e as barrigas das mulheres. Sabemos que vai durar pouco e todas as noites recolhemos preces novas, para juntar às antigas, e na pá de zinco dos sacrifícios queimamos alecrim e eucalipto com açúcar mascavado. Quando a noite começa, o nosso medo aumenta: "Os bárbaros aparecem à noite. Antes de escurecer deve recolher-se a última cabra, trancar os portões, colocar uma sentinela em todas as guaritas, para gritar o alerta. Toda a noite, diz-se, os bárbaros rondam para matar e roubar. Em sonhos, as crianças vêem o rosto feroz dos bárbaros a espreitar pelos postigos. 'Os bárbaros estão aqui!', gritam, sem poder ser consoladas. As roupas desaparecerão das cordas de secar, a comida das despensas, ainda que estejam bem trancadas. Os bárbaros cavaram um túnel sob as muralhas, dizem as pessoas; vão e vêm como querem... Os lavradores ainda cultivam os campos, mas têm que sair em bando, nunca sozinhos. Trabalham sem ânimo: os bárbaros estão só à espera que as colheitas estejam preparadas, dizem, e então inundarão os campos outra vez", disse o escritor (1) e a avó também falou. Nós acreditamos porque as nossas noites já não são como antigamente. Um cheiro espesso de guerra ficou aqui para sempre. As nossas casas ainda existem, porque nascemos aqui e as sabemos contar. O que resta delas são paredes porosas que suportam o céu. À superfície podemos ver agora o entrançado de bordão e capim todo ligado por uma argamassa que sabe a cal, mas talvez não seja bem isso, mas as próprias entranhas da terra sem tratamento. Por entre os buracos das balas, escapa-se uma luz coada, como se mil pólens a tornassem sólida como o gelo. À noite, nada, isto é, só o nosso medo e as esperas. Temos fome, mas ninguém se lembra, e os campos ainda demoram um pouco para produzir. Salvam-nos as folhas que ainda conseguem nascer, o leite das cabras e das mulheres de barriga inchada, outra vez inchada, como se tivessem que transportar a terra inteira às costas e por dentro de si próprias.Sei que estás no centro da terra e de lá escreves o mundo. Amiga, que os deuses da manhã transformem os teus pés descalços no suporte do teu corpo e lhes dêem a pele da serpente, para que mude a cada ferida. Vais ficar com as cicatrizes, mas isso já é normal. Todo o nosso corpo antigo transporta os lugares de lentas e infinitas cicatrizes, as que herdámos do lado da mãe, que já transportava as das avós e das tias, complexas como os cestos tecidos de fibras de várias cores, ou os tapetes que contam a vida e a morte das crianças. Que as tuas mãos guiem cada letra, da ciência da escrita que tão bem praticas, para gravar no papel as palavras da denúncia, os gritos do desespero, a espera silenciosa de quem já não consegue falar, nem gritar e anda às voltas em busca de um local de silêncio, como esses agora espalhados por toda a parte e que se chamam campos e são só outras maneiras de dizer reservas, lugar das pessoas perdidas para sempre. Bem que a avó tinha razão, quando dizia que o mundo ia mudar. Teus olhos, Alexandra, tão lindos como sempre, estão de certeza abertos para fixar esses pássaros doidos que se estilhaçam nas montanhas e matam as flores antes dos ciclos. No que resta da janela das duas paredes que sobraram da nossa antiga casa, num cartaz, ainda pode ler-se "Em Soweto, Alexandra, rebentam bombas no sexo dos anjos"(2). Tudo o resto desapareceu, comido pelo sol, desfeito pela chuva. Mas alguém pensou em ti, há muito tempo e sabia o teu caminho, antes do tempo da lua e dos sinais.Não sei a que cheira uma guerra nova, amiga. A guerra que passou aqui, misturou os cheiros todos, os da pólvora (uma pólvora lenta, como algodão em rama, esteve aqui parada durante muitos anos), o cheiro seco da poeira (que afastou a chuva, a manteiga e as rãs) e o dos soldados (suor, azedo e cansaço misturado com medo e violência). Mas, mesmo assim não sei, amiga, a que cheira uma guerra nova e por isso não posso ajudar-te a preparar os óleos essenciais para poderes resistir a esse novo odor. A única coisa que sei é que deve ser um cheiro seco, de montanha moída, de barro, de cimento e de ferro. Lembrei-me dos ferreiros e do ferro a derreter o interior da terra. Mas tudo isso é antigo, como os livros que restam no meu chão e estas paredes lentas, que mostram o seu avesso e deixam que o vento dos espíritos sopre por aqui sem limites. A única coisa que posso dizer-te é que as histórias ajudam a espantar o medo e, como à noite e na falta de mantas nos enovelamos de histórias, roubei algumas da avó para te mandar, com a certeza de que te serão úteis.Não posso falar-te de tempo, porque aqui misturámos os tempos todos. Ontem, hoje, amanhã não significa nada. O nosso tempo é um tempo dos bárbaros e só sabemos dos dias e das noites e da espera.Há mesmo gente que constrói altares. Talvez para que o sacrifício seja mais fácil. Para ti, minha irmã do mundo, desejo-te sorte, e que consigas dizer da morte anunciada das mulheres, do choro das crianças, lá em todos os sítios onde, ao que parece, o mundo anda do avesso e a terra não consegue completar as suas trezentas e muitas voltas em torno do sol. Conceição

(1) J. M. Coetze, "À Espera dos Bárbaros", Lisboa, Publicações D. Quixote, 1986, p. 109.
(2) David Mestre.