Para a Ivone Ralha

A senhora das mãos de seda colocou no cesto da tradição, por ordem, as tintas antigas. Amassou com dedos finos, tacula e lápis-lazuli, moídos sem pressa com gestos longos nos dormentes esquecidos das antigas casas da aldeia. O pó dos alfabetos (latim, éfik, desenhos geométricos em carapaças de tartaruga) foi misturado em cuidadas operações com óleos vegetais, minerais e perfumes. A senhora das mãos de seda amarrou o sopro das vozes dentro do cesto de adivinhação e inventou o mundo a partir das relações entre os diferentes sons. Aprendeu a olhar uma por uma e a cobrir de panos as palavras nuas das histórias. Para conhecer e distinguir as diferentes notas das vozes a senhora das mãos experimentou tudo: a escrita das pedras, a escrita na areia, o alfabeto grego, a escrita tifinagh e a revelação dos sonhos transcrita directamente dos símbolos mais perfeitos. Aprendeu a bordar tapetes showa, veludos do Congo, esteiras com provérbios inscritos. Coleccionou as fibras de todas as espécies vegetais mesmo as aparentemente desaparecidas dos mapas mais à mão. De cada vez que uma voz se mexia, ela ficava uns momentos quieta a descobrir-lhe as cores, os silêncios, os cheios, os vazios, enquanto nas voltas que dava procurava versos na poeira do sol. Deixava, a senhora, que os dedos molhados de pólen traçassem sinais e sinais na tela esticada da terra. Alguns alfabetos traziam à vista signos conhecidos, outros escondiam-se na opacidade de uma textura longa, enrolada em árvores, animais e tempos ainda por conhecer. A senhora das mãos e dos lentos cabelos continuou sentada. Dava muito trabalho estar em silêncio quando tempestades de flores desciam lentas por dentro das nossas cabeças. Tábuas de símbolos apresentavam-se para ler mas o livro da decifração dos provérbios não estava todo escrito. Foi necessário seguir, sempre quieta e em silêncio, o trilho da água no deserto, encontrar o coração da madeira no centro da floresta. A senhora usou as técnicas: lápis de plombagina, cera, carvão e miolo de pão fresco para esbater as cores. Conseguiu todos os negros do veludo, encontrou os peixes da origem, assistiu à passagem dos camelos e descobriu as histórias: “Surgem à sombra de Deus as falas inspiradas dos parentes inspiradas por um sonho, revelação, um alumbramento. Meu primo, como irmão, faz com que no meio da multidão nos possamos reconhecer pelas falas, pelas escritas e pelos desenhos das roupas da linhagem.” Depois, a senhora acendeu cada palavra à luz que lhe convinha, pálida e tímida como a chama da candeia de óleo de palma, doce e magoada como a fogueira da caça controlada, forte e terrível como o punhal sem bainha à procura de leito no peito dos irmãos. Para algumas vozes foi necessário trabalhar o vidro. Soprou-o de mansinho, controlando o fogo, para que inchasse a sua dimensão mineral. Deixou que arrefecesse em estilhaços de cores que arrumou em vitral. Bordou as cicatrizes em ponto grosso e deixou que a superfície reflectisse as curvas de repetição das palavras, dos sons e das vozes. Agora trabalha noite e dia sem rede, afina os paus com que mexe o cesto. Tem uma luz espalhada na alma que, às vezes, empresta às palavras quando estas se repetem, são pouco polidas, ou aparecem nuas e ásperas como as sedes. Descobriu o fio das vozes e não ilustra, ilumina com seus óleos de seda as palavras perdidas de tantas vozes em português.

Texto para o jornal Público sobre a exposição "Ivone Ralha. As vozes das Palavras" (Bruxelas, 2002).